Escola Sem Partido: Movimento que ataca carreira docente e a educação crítica
O processo de desenvolvimento na formação de qualquer carreira passa, pelo menos em algum mínimo momento, pela relação existente entre a escola e os trabalhadores da instituição. Dentre essas relações, a que ocorre com os docentes é essencial para compreender o grau de importância que esses profissionais possuem em toda a comunidade educativa, não sendo a única peça fundamental no funcionamento escolar, mas um “analisador-revelador” eficaz para entender os vários problemas com que a educação lida.
As dificuldades encontradas na carreira docente não são recentes. Os baixos salários, as jornadas exaustivas e desgastantes, a precarização do trabalho, o desprestígio, a falta de uma formação continuada e a desvalorização permanente da profissão (GATTI, 2009) são alguns dos problemas que persistem há anos, tornando-a cada vez menos atrativa. Acrescente-se a essas barreiras, o atual cenário político-ideológico em que professores(as) estão passando; nos quais vem sofrendo novos e gravíssimos ataques, principalmente a partir de projetos de lei, que visam tornar seu conhecimento mecanicista e conteudista, tirando seu caráter de educador, impedindo sua liberdade de expressão e proibindo a execução de discussões em sala de aulas que travem debates plurais e críticos a respeito de assuntos pertinentes na formação cidadã de alunos e alunas.
Os novos ataques proferidos aos docentes estão sendo instigados principalmente pelo Movimento “Escola Sem Partido” (ESP), coordenado pelo advogado Miguel Nagib, e por seu apoiadores, vindos do Movimento Brasil Livre (MBL), Revoltados Online e partidos conservadores.
Nagib, por meio de palestras, audiências públicas e pelo site do ESP, vem difundindo a falsa ideia de que a educação brasileira “doutrina” os alunos. Esse movimento começa a ganhar notoriedade, a partir do momento em que projetos de leis começam a circular com grande frequência no Congresso Nacional, nas Câmaras Estaduais e Municipais, sendo defendidas por políticos ligados à ala conservadora e do fundamentalismo religioso brasileiro.
Os principais projetos de Lei se destacam no cenário político a partir da divulgação de deputados e senadores, que se esforçam para manter tais projetos em tramitação. Alguns exemplos são a PL 867/2015[1], do Deputado Izalci Lucas, do PSDB/DF, a PLS 193/2016[2], do Senador Magno Malta do PR/ES e a PL 7180/2014 [3] do Deputado Erivelton Santana do PSC/BA, que altera o art. 3° da LDB, incluindo entre
os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa.
Também se destaca dentro desse cenário caótico, os Projetos de Lei no âmbito estadual e municipal, do Deputado Flávio Bolsonaro do PSC/RJ e do vereador Carlos Bolsonaro do PSC/RJ. Família famosa nos meios conservadores que explicitamente defendem a Ditadura Empresarial-Militar e os seus torturadores, como exemplifica a homenagem ao Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, feita por Jair Bolsonaro PSC/RJ, durante a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados Federais, dia 17 de abril de 2016.
É extremamente válido mencionar que Jair Bolsonaro é apoiador do “Programa Escola Sem Partido” e réu por incitação ao crime de estupro e injúria. Além disso, já posou com um cidadão sósia de Adolf Hitler que compareceu à Audiência Pública na Câmara Municipal do Rio de Janeiro realizada no dia 03 de dezembro de 2015, na qual se discutia o Projeto de Lei “Escola Sem Partido” de autoria de Carlos Bolsonaro, sobre a proibição da promoção de discussões políticas realizadas por professores em sala de aula.
(Foto 1: Sósia de Adolf Hitler, conhecido como Marcos Antônio, na Audiência Pública no Rio de Janeiro, no dia 03/12/15, usando bigode, cabelo e broches característico do ditador nazista – foto: O Globo; Foto 2: Jair Bolsonaro e Marcos Antônio vestido de Hitler – foto: Sul21)
A partir dos exemplos apresentados, analisando os apoiadores da “Lei da Mordaça” (como também é chamada a PL do Programa), percebemos que o movimento possui um espectro político-ideológico muito bem definido, estando diretamente ligado aos setores mais conservadores das bancadas legislativas. Tendo citado alguns de seus apoiadores e defensores, é necessário refletir sobre o papel exercido pelo organizador, Miguel Nagib, em relação ao modo como ele ataca a carreira docente e os princípios da liberdade de expressão. Para isso, escolhemos como objeto de análise a Audiência Pública da 5° reunião da Comissão Especial do Projeto “Escola Sem Partido” - PL 7180/2014[4], mais especificamente a última fala de Miguel Nagib, que aconteceu na Câmara dos Deputados, no dia 14 de fevereiro de 2017[5]. Na ocasião, o referido advogado presta um desserviço à educação e à carreira docente, proferindo inúmeras críticas sem base e ataques desleais aos trabalhadores da educação, que já sofrem com a desvalorização e com outras inúmeras dificuldades.
Nessa Audiência Pública participaram do debate como convidados o professor de filosofia da UFPE Rodrigo Jungmann, Oscar Halac, reitor do Colégio Pedro II, e Gilmar Soares Ferreira, professor de História e dirigente sindical dos trabalhadores em educação de Mato Grosso. O relator da sessão foi o Deputado Flavinho (PSB/SP), enquanto o presidente foi Marcos Rogério (DEM/RO) e vice-presidentes Pastor Eurico (PHS/PE), Lincoln Portela (PRB/MG) e Hildo Rocha (PMDB/MA).
Pegando como o principal interlocutor deste movimento, Miguel Nagib, e especificamente suas considerações finais no debate, percebemos sua grande aversão aos docentes. O advogado se utiliza de comparações esdrúxulas e desinformadas, que visam atacar a liberdade de expressão ao dizer quais os limites dos professores dentro da sala de aula, além de considerá-los como meros reprodutores de conteúdo.
Após 3 horas e 44 minutos de audiência, mais especificamente às 19:34:53 (vídeo no início do texto)[6], Nagib encerra sua participação. Na primeira parte, o advogado explica para o Deputado Glauber Braga (PSOL/RJ) que padres e pastores possuem liberdade de expressão, pois seus fieis vão livremente á igreja/templo, enquanto que os professores não podem ter essa liberdade, pois alunos e alunas fazem parte de uma audiência cativa, obrigados a frequentarem o ambiente escolar. Isso mostra como Miguel Nagib considera os alunos como uma “folha em branco”, sem opinião crítica e sendo somente uma massa passiva que absorve conteúdo pronto. Assim, há de certa forma uma reafirmação da concepção “bancária” da educação (FREIRE, 2011), moldada a partir da limitação da liberdade do professor de construir conjuntamente e provocar debates plurais em relação aos temas e assuntos que ainda são tabus na sociedade brasileira.
Na continuação de sua fala, sobre a moral cristã, Nagib diz que “burocrata não faz sermão”. Desse modo, chama os docentes de burocratas a partir de um sentido pejorativo, sendo então um realizador daquilo que a lei determina:
[o] professor é um burocrata, ele transmite aos alunos conteúdo do currículo, aquilo que está escrito e que aprovado pelas autoridades competentes. Não lhe cabe dizer aos filhos dos outros, o que é certo ou errado em matéria de moral.
Desse modo, podemos perceber que os argumentos apresentados servem para deslegitimar o conhecimento pedagógico e contribuir para a desvalorização da carreira docente.
Entretanto, o que mais chama a atenção, é o fato de que Nagib utiliza de uma péssima comparação para tentar “refutar” a ideia defendida pelos opositores do ESP, de que alunos (as) possuem um saber e conhecimento crítico, não sendo uma folha em branco. Assim, o advogado diz que esse argumento é típico de abusadores que empregam falas com esse teor para minimizar seus atos, transferindo a responsabilidade para a vítima. É a partir do minuto 5:09[7], que Nagib começa a proferir a horripilante comparação entre professores e abusadores/estupradores, no sentido de que os argumentos utilizados por aqueles que são contrários ao Movimento ESP são idênticos aos desses criminosos. A seguir, observa-se a fala do coordenador:
“[...] é um argumento que é típico, típico, dos abusadores, que procuram minimizar, procuram minimizar a gravidade dos seus atos, apelando para a condição pessoal de suas vítimas. [...] É um argumento típico também, dos estupradores, é um argumento típico de estupradores, que alegam em sua defesa que aquela menina de 12 anos, que eles acabaram de violentar, não é tão inocente quanto parece. Este é o argumento de que o aluno não é uma folha em branco.”
Analisando sua fala, nota-se que Nagib não compreende dos processos educacionais, pois desconsidera a capacidade crítica dos saberes discentes na construção do conhecimento coletivo e dos debates no ambiente escolar, além de prestar um enorme esforço para disseminar a ideia de criminalizar a profissão docente e demonizar a figura do professor/professora em sala de aula.
Em resumo, podemos dizer que a “Lei da Mordaça” demostra que os trabalhadores da educação são vistos como uma massa reprodutora de conteúdo estabelecido por lei, comparáveis com abusadores e não como profissionais capacitados em construir juntamente com alunos e alunas um conhecimento crítico e emancipatório. Como ocorreu na antiguidade, em que Sócrates foi condenado à morte por “corromper a juventude de Atenas”, hoje os professores brasileiros começam a serem “executados”, a partir de denúncias expositivas, e sem o direito de defesa, por cometerem a suposta “doutrinação”. Para que não bebamos cicuta como Sócrates, somente a mobilização contra essas leis municipais, estaduais e federais se tornam uma medida cabível para que a liberdade de expressão de professores e professoras seja garantida. O Programa “Escola Sem Partido”, por meio de seu mentor, demostra seu real objetivo: transformar os docentes em máquinas de reprodução de conteúdos desconexos, sem liberdade de debater questões necessárias à formação dos cidadãos e cidadãs, além de contribuir para a precarização do ambiente escolar e da carreira docente, contribui também para a tentativa de criminalizar e demonizar a atividade profissional de professores e professoras.
Por: Davi Ferreira Nogueira, licenciando em História-UFF e integrante do Grupo PET - Licenciaturas.
[1]Ver:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668. Acesso em: 20 de Julho de 2017.
[2]Ver:https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125666 . Acesso em: 20 de Julho de 2017.
[3]Ver:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=606722. Acesso em: 20 de Julho de 2017.
[4] Ibidem.
[5]Ver:http://www.camara.leg.br/internet/ordemdodia/integras/1525846.htm. Acesso em: 20 de Julho de 2017.
[6]Ver:http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/webcamara/videoArquivo?codSessao=58813#videoTitulo. Acesso em: 22 de Julho de 2017.
[7]Ver:http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/webcamara/videoArquivo?codSessao=58813#videoTitulo. Acesso em: 22 de Julho de 2017.
REFERÊNCIAS:
- Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira / organizador: Gaudêncio Frigotto, Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017;
- A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso / Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Org.). – São Paulo: Ação Educativa, 2016;
- FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. – 50. ed. ver. e atual. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011;
- GATTI, B. A. Atratividade da carreira docente; relatório de pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Fundação Victor Civita, 2009.