ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OS): MODELO DE GESTÃO PRIVADA NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS – PROBLEMAS E IMPLICAÇ
Atualmente algumas unidades institucionais públicas relacionadas à saúde, rádio, televisão e educação estão passando por mudanças na forma de organização administrativa, perdendo seu caráter público a partir da lógica privatista. O presente texto trabalhará o conceito de Organização Social e apresentará problemáticas que envolvem essa forma de gerencialismo privado em instituições públicas.
As Organizações Sociais (OS) são entidades privadas sem fins lucrativos, com ênfase na administração de estabelecimentos de saúde e educação públicos. Suas atividades são direcionadas à pesquisa, preservação ambiental e desenvolvimento tecnológico. O Poder Executivo, a partir da Lei Nº 9.637, de 15 de Maio de 1998 (também conhecida como Lei das Organizações Sociais), prevê requisitos específicos (Art. 2°) para que instituições privadas ou pessoas jurídicas de direito privado sejam habilitadas à qualificação de Organizações Sociais. Para tanto, devem comprovar o
[...] registro de seu ato constitutivo, com finalidade não-lucrativa, investindo os excedentes financeiros em suas atividades. Com participação no colegiado superior de membros da comunidade e representantes do Poder Público, com a obrigação de publicar anualmente, no Diário Oficial da União, os relatórios financeiros e o relatório de execução do contrato de gestão. Proibição de distribuição de bens ou do patrimônio líquido e previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União (BRASIL. Lei Nº 9.637, de 15 de Maio de 1998).
De acordo com este documento, o contrato de gestão que há entre o Poder Público e a empresa qualificada como OS, com o objetivo de formação de parceria para o desenvolvimento e a execução de atividades (Art. 5°), mais especificamente na área da saúde e educação, serve para declarar as entidades seguindo o interesse social e de utilidade pública (Art. 11°). Igualmente, estes legitimam o recebimento de recursos orçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento desse contrato (Art. 12°). Para a qualificação das atividades das Organizações Sociais, a ênfase no atendimento do cidadão-cliente e a ênfase nos resultados qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados estão como pontos centrais das diretrizes que regem o desenvolvimento dessas instituições.
O termo Organização Social pode gerar, em um primeiro momento, atratividade e sedução. Digo isto pois esta se apresenta, de certo modo, como uma estratégia de propaganda “social” que utiliza de uma linguagem progressista, fascinando cidadãos e políticos, logo capaz de estimular maior aceitação. Entretanto, sua definição, seu modo de execução e seus ideais carregam algumas complicações, que além de confundir, propagam a ideia de que as instituições públicas são improdutivas. Podemos então focar nos recentes casos em relação às OS nas escolas públicas, que com um discurso de que essas instituições de ensino apresentam baixo rendimento nas avaliações semestrais, bimestrais e anuais de proficiência, necessitam de substituição por entidades privadas que possuem uma gestão educacional mais produtiva e “enxuta”. Desse modo, essas organizações intensificam no Brasil a implementação de uma “agenda mais ampla de privatizações e mercantilizações” (APPLE, 2005, p. 19) dos setores públicos.
Para corroborar com uma maior efetivação dessa proposta, o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 739, de 2015, de autoria do Senador Cristovam Buarque – PPS-DF, altera a Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007, que por sua vez regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB. Esse Projeto de Lei serve para possibilitar a distribuição de recursos do Fundo, para que sejam destinados às organizações sociais e às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, sem fins lucrativos, que atuem nas diversas modalidades e etapas da educação básica. O PLS de Cristovam justifica que, em relação às organizações sociais
[...] a medida poderá contribuir para a melhoria da qualidade da educação, na medida em que a utilização do contrato de gestão, previsto na Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, permitirá a introdução de práticas modernas de gestão na educação (IDEM).
O Projeto tem como inspiração os Charter Schools, ou Escolas Charter, modelos adotados em países como os Estados Unidos, Reino Unido, França, Austrália, Japão e Nicarágua. Refiro-me, aqui, ao modelo de administração que tem como política de funcionamento a aquisição de verba pública por instituições geridas por “entes privados”, segundo um conjunto de leis definidas pelo governo Estadual e Federal. Sua política de implementação vem sendo praticada desde o início da década de 1990, mas se popularizou com a ratificação da lei norte-americana conhecida como No Children Left Behind – NCLB (“Nenhuma criança será deixada para trás”), assinada pelo presidente George W. Bush em 2002. Embora natural dos EUA, a prática também está presente na América Latina.
Esse modelo de escola é uma característica marcante das políticas neoliberais e contribui para fortalecer a lógica mercantilista, representando assim a “[...] institucionalização do protagonismo do setor privado na educação pública e a desresponsabilização do Estado pela educação básica” (SARDINHA, 2013, p. 48). O poder público e a fundação privada, num mecanismo de “gestão compartilhada”, mantém uma permutação entre financiamento e critérios de funcionamento. Dessa forma, podem inovar no âmbito da gestão e das metodologias educacionais, seguindo a lógica interna das fundações que fazem essa administração. É o caso da Fundação Bill and Melina Gates, que já patrocinou cerca de dois bilhões de dólares em reformas de escolas americanas, mas impondo um conjunto de metas que tornam precárias as relações trabalhistas dos docentes (RUSSON, 2010). É a partir dessa política, entre a forma de financiamento e de gestão/administração, que o “[...] incentivo ao crescimento do ensino privado e da criação de formas de mercantilização do ensino público” (SARDINHA, 2013, p. 50) se sistematiza, sendo naturalizadas não apenas no âmbito educacional, mas também no sistema de saúde.
O caso norte-americano influencia fortemente a política brasileira de implementação de modelos baseados nos Charters Schools, como o próprio Senador Cristovam menciona na justificativa do PLS 739/ 2015 que está em tramitação. Entretanto essa forte relação entre o Estado brasileiro e os empresários, como no caso americano, se fez presente com intensidade a partir da Lei N° 11.079, de 30 de Dezembro de 2004, que “institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública”. Acrescenta-se a isso a política do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) legitimando a ascensão do grupo empresarial “Movimento Todos pela Educação”. Portanto, esse movimento se constitui como
[...] um aglomerado de grupos empresariais com representantes e patrocínio de entidades como o Grupo Pão de Açúcar, Fundação Itaú-Social, Fundação Bradesco, Instituto Gerdau, Grupo Gerdau, Fundação Roberto Marinho, Fundação Educar-DPaschoal, Instituto Itaú Cultural, Faça Parte-Instituto Brasil Voluntário, Instituto Ayrton Senna, Cia. Suzano, Banco ABN-Real, Banco Santander, Instituto Ethos, entre outros (SAVIANI, 2007, p. 13).
Um exemplo marcante dessa política é o papel da Fundação Itaú-Social. Antes, é importante lembrar que o Itaú-Unibanco é um dos maiores bancos privados do hemisfério sul. Além disso, a fundação criada por esta entidade é uma das grandes defensoras do projeto de Charters Schools para a educação básica pública. Em 2009, iniciou o Programa Excelência em Gestão Educacional, com a publicação de alguns estudos sobre o tema, incluindo o documento Modelo de Escola Charter: A Experiência de Pernambuco. No arquivo, é relatada a experiência do Programa de Desenvolvimento de Centros de Ensino Experimental (Procentro), modelo de Charter School implantado pela Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco em parceria com o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE) de 2005 a 2007, idealizado pelo “[...] empresário Marcos Magalhães, então presidente da Philips na América Latina” (BRAGA, 2013, p. 143).
Nesse documento, é conceituado o modelo de Escola Charter, sendo a
[...] escola pública com maior autonomia, cuja gestão é compartilhada entre os setores público e privado. [...] Financiadas em parte pelo governo e em parte pela iniciativa privada, as escolas charter operam livres de muitas leis e regulamentos a que está exposta a maioria das escolas públicas, podendo inovar com maior facilidade na gestão do ensino [...]” (DIAS, 2010, p. 10).
O documento da Fundação Itaú-Social também cita a Lei das Organizações Sociais e defende com veemência o caráter de gerenciamento público-privado de instituições. Da mesma maneira, demostra como a inserção dos Charter Schools como política pública brasileira pode ser implementada seguindo a legislação. Para ilustrar, destaco o seguinte trecho:
[...] a legislação brasileira permite esse tipo de gestão compartilhada há mais de uma década. As Organizações Sociais (OS), entidades do direito privado, foram legalmente reconhecidas a partir da Lei 9.637, aprovada em 1998. A principal inovação foi a admissão de que as OS, desde que legalmente constituídas, podem firmar convênios para exercer atividades típicas do Estado, recebendo para isso repasse de recursos públicos em forma de valores orçamentários, material, bens imóveis e pessoal (DIAS, 2010, p. 20).
É possível perceber o grande interesse dos aparelhos privados de hegemonia pela educação pública do segmento básico; igualmente, é importante perceber o interesse que o próprio Estado brasileiro possui sobre o tema: quando institui a parceria público-privada no gerenciamento das escolas, se distancia do dever de oferecer o direito universal à educação pública, gratuita e de qualidade para toda a população, além de afirmar a falsa necessidade de privatização desse setor.
As formas de gerenciamento das escolas vão se baseando em padrões empresariais em que há avaliações em massa, conteúdos abordados com enfoque tecnicista, constantes testes de proficiência, incentivos e prêmios para as metas alcançadas. Mesmo sendo o atual modelo sem fins lucrativos, a prática intensifica o início da política privatista dos últimos governos, transformando a educação em mercadoria.
A partir da análise anterior sobre as Charter Schools, podemos perceber como o modelo norte-americano dialoga eficientemente com as Organizações Sociais brasileiras e com projetos pilotos desenvolvidos não apenas em Pernambuco como também em outros estados nacionais. Cito, por exemplo, a complexa situação do estado de Goiás. A Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte (SEDUCE), por meio do chamamento público N° 003/2016[7] sob processo Nº 2016.0000.601.8187, abriu “[...] seleção de organização social, qualificada em educação no âmbito deste Estado, para celebração de Contrato de Gestão” e com a finalidade de
[...] transferir ao PARCEIRO PRIVADO o gerenciamento, a operacionalização e a execução das atividades administrativas, de apoio para a implantação e implementação de políticas pedagógicas, definidas pela SEDUCE, nas Unidades Educacionais da Rede Pública Estadual de Ensino, Macrorregião IV –Anápolis.
Nesse processo, a entidade Grupo Tático Resgate – GTR, CNPJ. 10.883.810/0001-97 foi selecionada como Organização Social responsável pelo gerenciamento de escolas públicas por 36 meses.
Entretanto, a entidade privada (que tem como presidente o Sr. José Roldão Gonçalves Barbosa, e como um dos responsáveis Antonio Carlos Coelho Noleto, filiado ao PSDB-Goiás, recentemente sofre com o Ministério Público do Estado de Goiás, que redigiu uma ação civil pública com pedido liminar contra a Organização Social por problemas judicias com os responsáveis pela GTR.
A partir da exemplificação dos casos de Pernambuco e Goiás, podemos perceber que a política baseada nas OS está sendo intensificada por um Estado neoliberal que mercantiliza os meios públicos, e por entidades privadas de alto poder econômico que enxergam nessa parceria uma grande possibilidade de comandar o setor da educação através dos projetos de gerenciamento empresariais. Estas visam formar mão-de-obra qualificada, que atenda às necessidades de um mercado que se mostra cada vez mais amplo e especializado. Desse modo é importante entender que a Lei das Organizações Sociais, como outras, é extremamente prejudicial para a educação pública, uma vez que entrega na mão de entidades privadas o dever do estado de organizar e administrar as instituições públicas. Contudo, também serve para intensificar a mercantilização da educação básica de forma que, no futuro, tenhamos a maior parte das matrículas efetuadas em escolas do segmento básico privados, como ocorre com o ensino superior brasileiro, que no ano de 2015 tiveram 8.027.297 matrículas feitas para a Educação Superior, sendo que 6.075.152 (75,68%) foram realizadas em estabelecimentos privados, enquanto que apenas 1.952.145 (24,32%) foram feitas nas instituições públicas (Federal, Estadual, Municipal).
Por: Davi Ferreira Nogueira - Licenciando em História - UFF e integrante do grupo PET/Conexões de Saberes - UFF.
Referências:
- APPLE, Michael W. Para além do mercado: Compreendendo e opondo-se ao neoliberalismo; tradução de Gilka Leite Garcia, Luciana Ache. – 2005.
- BRAGA, Simone Bitencourt. O Público e o privado na gestão da escola pública brasileira: um estudo sobre o Programa “Excelência em Gestão Educacional” da Fundação Itaú-Social / Simone Bitencourt Braga.- 2013. Orientadora: Terezinha Fátima Andrade Monteiro dos Santos.
- DIAS, Maria Carolina Nogueira. O modelo de escola charter: a experiência de Pernambuco / Maria Carolina Nogueira Dias, Patrícia Mota Guedes ; revisão crítica Ana Beatriz Patrício,Isabel Cristina Santana, Nilson Vieira Oliveira. --São Paulo: Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial: Fundação Itaú Social, 2010. -- (Coleção excelência em gestão educacional ; 2)
- RUSSON, G. Obama’s neoliberal agenda for education. International Socialist Review. Issue 71, May - June 2010.
- SARDINHA, Rafaela Campos. O Projeto Procentro e as escolas charter: investigação de um modelo educacional defendido pela Fundação Itaú Social. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em Educação)-Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
- SAVIANI, D. O Plano de Desenvolvimento da Educação: análise do projeto do MEC. Educ. e Soc. Vol. 28 n°100. Campinas: 2007.
Notas:
Ver:https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124052. Acesso em: 18 de Janeiro de 2017.
Ver:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11494.htm. Acesso em: 18 de Janeiro de 2017.
Ver:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/L11079.htm. Acesso em: 18 de Janeiro de 2017.
Ver: https://www.fundacaoitausocial.org.br. Acesso em: 18 de Janeiro de 2017.
Ver: https://fundacao-itau-social-producao.s3.amazonaws.com/files/s3fs-public/biblioteca/documentos/escola-charter-artigo.pdf?3Mm23jBVxYB7i2fb2OIhGlWDBzayHWVy. Acesso em: 20 de Janeiro de 2017.
Ver: http://icebrasil.org.br/. Acesso em: 20 de Janeiro de 2017.
Ver:http://www.seduc.go.gov.br/documentos/chamamentopublico2016/03/ARQUIVO%20PRINCIPAL%20-%20EDITAL.pdf. Acesso em: 20 de Janeiro de 2017.
Ver:http://www.seduce.go.gov.br/documentos/chamamentopublico2016/03/HOMOLOGA%C3%87%C3%83O%20OS.PDF. Acesso em: 20 de Janeiro de 2017.
Ver:http://www.tse.jus.br/partidos/filiacao-partidaria/relacao-de-filiados. Acesso em: 20 de Janeiro de 2017.
Ver:http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2016/0301/16_48_34_847_acao_os_educacao.pdf. Acesso em: 20 de Janeiro de 2017.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Sinopse Estatística da Educação Superior 2015. Brasília: Inep, 2016. Disponível em: HTTP://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-sinopse. Acesso em 21 de Janeiro de 2017.